POLÍTICA
A maior notícia do século, por Dorrit Harazim
Dorrit Harazim, O Globo
Benito Mussolini havia sido enforcado dez dias antes e Adolf Hitler tinha se suicidado na semana anterior; os russos estavam em Berlim e as tropas nazistas já haviam se rendido em Itália, Dinamarca, Noruega e Países Baixos.
A Segunda Guerra Mundial estava por um fio, com Winston Churchill, Josef Stalin e Harry Truman prontos para fazer seus discursos de vitória. Faltava, porém, um comunicado oficial atestando o final da carnificina que já durava seis anos.
Eram 3h24m da tarde de 7 de maio de 1945 quando o escritório da agência de notícias Associated Press (AP) em Londres recebeu o telefonema que acabou com a guerra antes do combinado. A ligação chegara através de um canal militar não sujeito à censura, e tinha o chefe do escritório de Paris da AP no outro lado da linha. “Aqui é Ed Kennedy. A Alemanha capitulou incondicionalmente. Repito, capitulou incondicionalmente. É oficial. Coloque Reims, França, como procedência e solte a notícia, já.”
Não discutiu sua decisão com nenhum chefe. O texto tinha perto de 300 palavras. “Agora é esperar para ver o que acontece”, comentou, após desligar.
Dois minutos mais tarde, Londres transmitia a bomba para a central em Nova York, que ainda segurou a notícia por oito minutos antes de colocá-la no ar.
Instantaneamente rádios por toda a América interromperam suas programações para dar a grande nova, edições extras de jornais inundaram as ruas e o furo tinha tudo para ser o momento de maior triunfo profissional e pessoal de Edward Kennedy, já consagrado como um dos grandes nomes de sua geração.
Os fatos seguiram outro roteiro. Passadas menos de 24 horas, Kennedy fora suspenso por tempo indeterminado e seria demitido mais tarde, sem alarde. No mesmo dia, o presidente do Conselho da AP divulgava um comunicado lamentando “profundamente” o monumental furo obtido pelo jornalista.
Perto de 50 correspondentes de guerra do front europeu recomendaram a revogação de sua credencial. Kennedy acabou expulso da França pelo Comando Supremo das Forças Aliadas e teve de retornar aos Estados Unidos.
“Faria tudo de novo”, declarou apenas, ao desembarcar. Conseguiu emprego como redator-chefe num pequeno jornal da Califórnia, o “Santa Barbara News-Press”, fez uma tentativa como publisher do “Monterrey Peninsula Herald” e morreu num acidente de automóvel aos 58 anos de idade. Seu pecado capital foi ter desafiado a censura e atropelado um embargo de notícia.
Passaram-se 67 anos desde então. Somente agora, três semanas atrás, a Associated Press admitiu oficialmente que Edward Kennedy fizera o certo.
“Foi um dia negro para a Associated Press, que administrou o fato da pior maneira possível”, desculpou-se em nome da empresa Tom Curley, atual diretor executivo da agência noticiosa e coautor do prefácio do livro, de onde foram tiradas as informações para este artigo.
O pedido póstumo de desculpas veio junto com a chegada às livrarias do livro de memórias do jornalista — “Ed Kennedy’s War: V-E Day, Censorship and the Associated Press”, disponível na Amazon.
Recomenda-se a leitura a todo jornalista, uma vez que o dilema que se apresentou para Kennedy, além de universal, é atualíssimo.
“Se você dá a alguém uma caneta e a autoridade de um censor, estranhas coisas acontecem”, costumava dizer Kennedy, que seguiu à risca a demarcatória definida por Franklin D. Roosevelt: a censura só é justificada se estiver a serviço da proteção das forças aliadas em combate.
Na noite da rendição, Kennedy integrava o grupo de 17 correspondentes de guerra reunidos às pressas pelo comando aliado para testemunhar o momento. Todos tiveram de assinar um termo de sigilo a bordo do avião militar que os levou de Paris para Reims, no nordeste da França, onde o general Dwight Eisenhower havia instalado seu QG avançado. Só divulgariam o que veriam quando autorizados pelo comando Aliado.
Em princípio, o embargo acordado duraria apenas algumas horas, mas logo os jornalistas foram informados de que ao fim da Segunda Guerra Mundial só poderia ser noticiado 36 horas depois, às três da tarde do dia seguinte.
Só que passadas doze horas da capitulação, uma pequena rádio alemã da cidade de Flensburg vazara a informação e Kennedy procurou dobrar os censores americanos. Nada feito.
“O general Eisenhower até desejaria que a notícia seja divulgada de imediato para que vidas sejam salvas, mas suas mãos estão atadas por esferas políticas superiores”, respondeu-lhe à época o porta-voz do comandante.
As esferas políticas superiores chamavam-se Stalin, Truman e Winston Churchill. Os três haviam concordado em bloquear a notícia da capitulação por um dia para dar tempo ao marechal russo de também preparar a cerimônia de rendição que presidiria em Berlim.
Assim, todos fariam comunicados simultâneos a seus povos, pontualmente às 3 horas da tarde do dia 8 de maio de 1945.
Kennedy tomou a decisão de furar unilateralmente o acordo ao constatar que não estaria colocando em risco a vida de nenhum soldado. Pelo contrário, abreviaria a matança em algumas horas, o que já era muito.
De fato, naquele mesmo 7 de maio, um submarino alemão afundara duas embarcações na costa da Escócia e os combates prosseguiram na Checoslováquia e na Iugoslávia. Ademais, com a assinatura da rendição, a própria função dos censores militares perdia validade, a seu ver.
Duas vozes contundentes saíram em sua defesa à época. A primeira foi a de A. J. Liebling, na revista “New Yorker”, em artigo intitulado “A rendição da AP”. A segunda foi a de Wes Gallagher, despachado pela Associated Press para substituir Kennedy no escritório de Paris.
Por ocasião de seu primeiro encontro com Eisenhower, o repórter comentou com o general que no lugar do antecessor teria feito a mesma coisa, acrescentando: “Apenas teria lhe telefonado antes.”
Ike retorquiu que, nessa hipótese, teria ordenado sua prisão. Resposta de Gallagher: “Mas isso não teria abortado a notícia.”
Dorrit Harazim é jornalista